O Dom Quixote das Locadoras

12/02/2019

Em meio ao avanço tecnológico que praticamente acabou com as locadoras de vídeo, um homem no norte do Paraná usa a criatividade para não fechar as portas  

Biagini mostra a capa do primeiro filme que comprou para sua locadora, ainda em VHS, estrelado por Kirk Douglas em 1937
Biagini mostra a capa do primeiro filme que comprou para sua locadora, ainda em VHS, estrelado por Kirk Douglas em 1937

Por Fabiano Oliveira

Enquanto a maioria das pessoas procura uma sombra para se esconder do sol forte de janeiro, um homem cruza as ruas de Jacarezinho, no norte do Paraná (390 km de Curitiba), com duas grandes sacolas nas mãos e uma pesada mochila nas costas. Embora não pareça se incomodar com o calor, ele anda rápido; e só para quando encontra um cliente em potencial. "E aí? Vai levar algum hoje? Tenho um bom aqui pra você, hein?". Antes mesmo que o cliente possa responder, o homem coloca as sacolas no chão e tira, de uma delas, um filme. "Você vai gostar. Pode levar. Semana que vem você me devolve".

O homem é Hélio Biagini, de 54 anos. Há 31 ele é dono da Medieval Vídeo, a única locadora de filmes ainda em atividade na cidade. O nome não poderia ser mais apropriado. Em tempos de farta pirataria, do fácil acesso à TV a Cabo e das inúmeras plataformas digitais, o trabalho de Biagini lembra a obstinação de Dom Quixote com a obsoleta cavalaria andante da Idade Média. A comparação agrada. "Cara... eu realmente remo contra a maré. Mas acredite ou não, as pessoas ainda alugam filmes. Tanto é que, desde que abri a locadora, essa é a minha principal fonte de renda", confidencia.

O fato de Biagini se manter no mercado até hoje tem a ver com uma ideia que ele colocou em prática em 1992, e que tem sido o carro chefe da locadora nesses últimos anos. Na época, enquanto os concorrentes atendiam apenas nas lojas, Biagini decidiu que iria, ele, ao encontro dos clientes. Nascia ali uma espécie de locadora ambulante, ou delivery, como ele prefere chamar. 

"Tenho certeza que se eu não fizesse isso já teria fechado as portas, como tantos fizeram. E essa é uma possibilidade que, sinceramente, nunca me passou pela cabeça. Eu amo cinema e amo o que faço. Então, se o único jeito de continuar na ativa é ir pra rua, eu vou pra rua".

Biagini anota todas as suas locações em bloquinhos de papel. Ele não usa computador sequer para catalogar o acervo.
Biagini anota todas as suas locações em bloquinhos de papel. Ele não usa computador sequer para catalogar o acervo.

O trabalho começa logo pela manhã. Biagini faz tudo a pé, já que nunca quis aprender a dirigir carro nem moto. "Tenho fobia desse negócio. Prefiro ir caminhando", comenta. Avesso à tecnologia, diz que também nunca usou computadores para catalogar os quase 90 mil filmes que afirma ter em seu acervo. Todos os títulos, alugados ou devolvidos, são anotados em bloquinhos de papel junto com o número de telefone dos clientes. Já os filmes que ele leva para rua são separados de acordo com o que eles gostam. "Muitos alugam comigo há anos. Então eu já sei qual o estilo de filme que agrada um e outro. Procuro a satisfação do cliente, por isso valorizo demais o atendimento. É a qualidade do atendimento que faz a diferença. O produto não precisa ser exclusivo, mas o serviço sim", explica enquanto tira o suor da testa.

Os prazos para devolução também não seguem uma regra específica. É o cliente que escolhe quando vai devolver. "Às vezes o filme chega a ficar seis meses com a pessoa. Mas o legal é que eles sempre devolvem. Em mais de 30 anos de serviço, eu nunca cobrei uma única multa por atraso. Não é agora que eu iria fazer isso", ri.

Biagini acredita ter mais de 90 mil filmes em seu acervo
Biagini acredita ter mais de 90 mil filmes em seu acervo


Opções Diferenciadas


O imóvel onde funciona a Medieval Vídeo é pequeno; tem pouco mais de 20 metros quadrados. Quem vai ao local pela primeira vez pode se surpreender não só com a quantidade de filmes, mas também com as muitas teias de aranha nas paredes, teto, e até mesmo nas estantes de filmes. Biagini garante que não se trata de desleixo. Para ele, é justamente esse cenário que ajuda a dar um ar "medieval" à locadora.

O metalúrgico Fábio Lemos é um dos clientes assíduos da Medieval. Toda semana ele vai até a locadora, onde é possível encontrar o Biagini de segunda a sexta, das 18h às 22h. "Eu costumo vir aqui não só pra alugar filmes, mas também para conversar com o Hélio, que é um cara muito simpático e bom de papo. É legal porque aqui você pode trocar uma ideia sobre cinema", explica. "Quanto aos filmes, eu gosto dos filmes antigos; e muitos dos que eu alugo aqui a gente não acha nem na internet. O acervo dele é realmente muito bom", comenta.

A quantidade de obras antigas, aliás, é apontada como outro diferencial no trabalho de Biagini. "Eu não ligo muito para os lançamentos. Esses são fáceis de achar na internet. Na verdade sempre gostei mesmo é de trabalhar com filmes raros, e com os clássicos do cinema. Muitos em preto e branco", conta. 

"Tenho filmes belgas, franceses soviéticos, iranianos, e até do Azerbaijão.  Quem  realmente gosta de cinema sabe que tem de tudo aqui; desde de    Stanley Kubrick,  a Alfred Hitchocok e Fellini".

Por causa da variedade do acervo a Medieval também atraiu clientes de cidades vizinhas como Cambará, Ribeirão Claro, Santo Antônio da Platina, e Ourinhos (SP). Por isso, vez ou outra, Biagini pega o ônibus e vai para essas cidades em busca dos antigos e de novos clientes. Orgulhoso, ele estima que já andou, num único dia, cerca de 20 quilômetros levando filmes para a clientela. "Rapaz. Faz as contas aí. Será que a distância que eu percorri já dá pra chegar até a lua?", brinca.

Fábio Lemos é um dos clientes assíduos de Biagini
Fábio Lemos é um dos clientes assíduos de Biagini


Sobrevivente


Ao contrário de Dom Quixote - que tinha moinhos de vento e outros inimigos imaginários para justificar sua saga de cavaleiro andante em pleno século XVI - Biagini tem enfrentado inimigos reais ao longo desses anos. A pirataria é o primeiro deles, seguido de perto pelos inúmeros sites que oferecem downloads na internet e, mais tarde, pelas plataformas virtuais como a Netflix. A dificuldade em competir com esse mercado foi o que levou muitas locadoras a fecharem as portas. Só em Jacarezinho, cidade com pouco mais de 40 mil habitantes, existiam cerca de 10 locadoras nos anos 2000. O comerciante Mauro Rédua era dono de três delas; cada uma num ponto diferente da cidade. "Foi uma época maravilhosa; a realização de um sonho que, por 14 anos ajudou a por comida dentro de casa", recorda. Nos últimos anos de locadora, Rédua lembra que perdeu muito dinheiro. O alto investimento já não dava o retorno esperado; até que em 2014, ele resolveu deixar o ramo. "Infelizmente o mercado estava cada vez mais em decadência. Por isso, mesmo com as lojas, eu já exercia outra atividade no comércio. Eu quis me preparar para que, assim que eu baixasse as portas, pudesse me dedicar a outra coisa".

Atualmente Rédua é dono de duas lojas de tintas. Uma em Jacarezinho e outra em Santo Antonio da Platina. Concorrentes na época de ouro das locadoras, hoje Rédua é cliente de Biagini, e elogia a determinação do amigo. "Ele é diferente. É um cara que soube como poucos transformar um hobbie em negócio. Ele me ajudava quando eu tinha locadora. Dava dicas. Além de generoso, o Hélio é um guerreiro, e as pessoas reconhecem isso nele".

A longevidade da Medieval Vídeo fez com que o professor de Administração da União das Instituições Educacionais de São Paulo (UNIESP), Leandro Martins de Assis, escolhesse a locadora para realizar um estudo durante o curso de mestrado. "Percebi que, além de amar o que faz e ser muito criativo, o Hélio trabalha com metas. É um sujeito extremamente disciplinado", relata. "Todos os dias ele sai com o compromisso de entregar pelo menos 60 filmes a cinco reais cada, fora os que ele aluga à noite, quando fica na loja. Acho que esses são alguns dos fatores que ajudam a explicar porque o Hélio ainda consegue se manter num mercado praticamente falido". 

Apesar de ser um sobrevivente no ramo, Biagini tem os pés no chão. A prova é que com o dinheiro que ganhou na locadora ao longo de todos esses anos ele comprou imóveis que hoje estão alugados, rendendo um bom dinheiro. Mesmo assim, ele não se acomoda. Depois de um longo dia de trabalho, a mochila e as sacolas já estão novamente cheias para mais uma jornada pelas ruas da cidade. "Vou continuar trabalhando todos os dias, enquanto minha saúde permitir. Enquanto eu tiver disposição estarei por aí com os meus filmes. Isso é a minha vida. É o que eu sei fazer de melhor. Eu sou a Medieval", resume.

Mauro Rédua (ao centro) foi dono de locadora por 14 anos. Hoje é cliente de Biagini
Mauro Rédua (ao centro) foi dono de locadora por 14 anos. Hoje é cliente de Biagini